Prefeito Haddad, Uber, e o futuro da política
by Jose Murilo Tuesday, September 27, 2016

O objetivo do post é colocar foco em notícia divulgada no fim de semana — "Haddad revoga resolução sobre sigilo de dados de empresas de transporte" —, a qual pode ter passado desapercebida aos interessados em temas como #economia_digital, a chamada '#sharing_economy' [economia do compartilhamento(?)], e também questões de privacidade de dados pessoais, assim como políticas de dados abertos e acesso à informação. A decisão do prefeito se insere na abordagem inovadora adotada por sua gestão na regulamentação dos 'serviços de transportes individuais de passageiros via aplicativos', permitindo a inovação mas colocando limites, e o mais importante: demandando o compartilhamento de informações por parte de Uber e afins.

O compartilhamento de dados é o coração da regulamentação. A ideia da gestão Haddad, que chegou a ser elogiada pela Uber, é cobrar R$ 0,10 a cada km rodado nos carros das empresas. Para fiscalizar isso, as empresas teriam de compartilhar seus dados, como número de motoristas, número de clientes, número de viagens feitas e quantidade de quilômetros rodados em cada viagem. As demais empresas do ramo já cadastradas — Cabify, EasyGo, 99POP e outras — estão cumprindo as regras, e fornecendo seus dados à Prefeitura. Só a Uber não.
Haddad diz que sigilo a dados da Uber e outras firmas é irregular e manda revogar resolução - Estadão

Seguindo um padrão global de atuação, o Uber utiliza o poder de fogo de seu volumoso capital de risco acumulado para tomar de assalto mercados estabelecidos. Faz parte de sua estratégia manipular políticos e burocratas através de lobby agressivo, buscando influenciar os processos locais de regulamentação. Na California, onde naturalmente ocorreu o primeiro processo de regulamentação de 'ridesharing', a intenção do Uber em dificultar o compartilhamento de dados com o poder público já estava claramente identificada.

Em 2013 a Califórnia se tornou o primeiro estado dos EUA a aprovar uma regulamentação para o 'ridesharing' - lei cuja concepção contou com participação significativa do Uber. Entretanto, a participação no desenho da lei não evitou que a empresa tenha descumprido cláusulas que exigem o compartilhamento de alguns de seus dados com as bases de dados públicas. Dados como o número de viagens por código postal, a remuneração dos motoristas, além de informações sobre acidentes e o número de veículos adaptados para cadeirantes. Em 2016 o Uber foi obrigado a pagar multa de US$ 7.6 milhões para violar a lei estadual que exige o compartilhamento destes dados.
Is Uber the next big thing that goes kaput? This guy thinks so. - The Washington Post


O mundo segundo Uber

Vivemos um momento onde ocorre rápida e complexa transição de paradigma econômico, turbinada por inovações da tecnologia digital que alteram profundamente os modos de operação de algumas de nossas mais importantes infraestruturas urbanas. No caso de mercados aquecidos como as metrópoles globais, trava-se intensa disputa no campo da regulamentação de serviços públicos, especialmente nos setores impactados pela atuação de corporações transnacionais baseadas no Vale do Silício.

No episódio noticiado acima, o prefeito Fernando Haddad ordena a revogação de uma resolução da Secretaria de Municipal de Transportes, a qual iria enfraquecer o aspecto fundamental de compartilhamento de dados contido na regulamentação estabelecida em maio deste ano. Trata-se de cenário conhecido, onde 


, em plana reta final de campanha, mostra que o prefeito está antenado neste tema de vital importância para o futuro da cidadania.

Neste contexto, cabe trazer algumas referências sobre como o Uber é visto em sua atuação mundo a fora. Uma boa fotografia é apresentada pelo Evgeny Morozov no Guardian:

O plano de jogo do Uber é simples: o objetivo é baixar o preço a ponto de aumentar a demanda -- ao atrair para o serviço clientes que de outra forma teriam usado seu próprio carro ou transportes públicos. E para fazer isso, estão dispostos a queimar um monte de dinheiro, enquanto expandem o negócio rapidamente para indústrias adjacentes, como a entrega de compras e de pacotes. Uma pergunta óbvia, que raramente é feita: de quem é o dinheiro é que o Uber está queimando? Com investidores como Google, Jeff Bezos, da Amazon e Goldman Sachs em sua retaguarda, o Uber é um exemplo perfeito de empresa cuja expansão global foi facilitada pela incapacidade dos governos em taxar os lucros aferidos por gigantes dos setores financeiro e de alta tecnologia.
Cheap cab ride? You must have missed Uber’s true cost - The Guardian

Fato é que o Uber subitamente ocupou a posição de fenômeno mundial, e naturalmente tornou-se objeto de discussão conceitual e teórica sobre o desenvolvimento da economia digital, originando um debate acalorado entre especialistas na rotulagem de elemento tão novo e diruptivo. A disputa ocorre entre os que anunciam o Uber como modelo inevitável de organização corporativa em rede, e os que vêem o atual modelo como um resquício do capitalismo industrial, turbinado pelas ferramentas digitais e o efeito de rede. 

Em (clássico) artigo no Medium ("Redes e a natureza da firma - Qual o Futuro do Trabalho?", 14/08/2015) Tim O'Reilly descreve Uber e Airbnb como "exemplos didáticos" do "caminho pelo qual redes triunfam sobre formas tradicionais de organização corporativa, e como tais arranjos e iniciativas estão transformando os modelos tradicionais de gestão dessas organizações". Hum, talvez não seja bem assim. O Uber e o Airbnb são "exemplos didáticos" do que Michel Bauwens da P2P Foundation chama de "capitalismo netárquico": uma forma organizacional intermediária na qual os donos de plataformas proprietárias utilizam-nas para extrair valor a partir dos usuários. Como um amigo no Twitter observou no mesmo dia em que o artigo de O'Reilly foi postado, "os capitalistas do Uber e do Airbnb extraem usura do uso que os trabalhadores fazem de seu próprio capital físico".
Uber: NOT the Networked Successor Economy You’re Looking For - C4SS.org

Apesar da boa reputação que o Uber costuma ter entre seus usuários, especialistas enxergam vários problemas nas estratégias de expansão da empresa, decisivas para que o modelo pudesse chegar tão longe, tão rápido. Steven Will argumenta em seu recente livro ("Raw Deal: How the 'Uber Economy' and Runaway Capitalism are Screwing American Workers") que o Uber transgrediu regulações que anteriormente regiam serviços de táxi em muitos mercados; inundou a rua com condutores não profissionais, não regulamentados e sub-segurados; enganou os clientes sobre a adequação dos controles de antecedentes para seus motoristas e lutou contra esforços para uma triagem mais rigorosa deles, como através da análise de impressões digitais; exagerou a remuneração que os motoristas poderiam ganhar trabalhando para o Uber; e evitou pagar alguns dos impostos e taxas que outros serviços de táxi e limusine devem pagar aos governos locais.

O desafio da regulamentação de 'Ubers'

O impacto da era da informação sobre marcos regulatórios consolidados é fenômeno já conhecido. Setores inteiros foram desmontados de maneira inapelável, sendo obrigados a se reinventar, como a indústria da música, o mercado editorial, e neste momento, o setor de jornalismo e mídia em geral. O crescimento exponencial do uso de algoritmos em todas as dimensões da vida moderna apontam para uma radicalização no aceleramento das transformações na sociedade, especialmente nos setores que de alguma forma abrigam interfaces entre o digital e a vida urbana. Podemos destacar os serviços de mobilidade e hospedagem como exemplos, onde figuram dois gigantes globais dos algoritmos, o Uber e o Airbnb.

Nos últimos anos, o crescimento na utilização destes serviços tem gerado desequilíbrios, e tem obrigado os governos municipais a se posicionarem na questão. Faz parte da estratégia destas empresas a rapidez em invadir o mercado com a oferta de um serviço 'muito melhor e mais barato', trazendo

Processos de regulamentação inovadores e esclarecidos são 


..o maior truque do Uber é convencer algumas das maiores cidades do mundo que, quando se trata de tráfego, ele não existe. Mas não pense que o município de São Paulo, Brasil, está entre os enganados. A metrópole conhecida por extensos engarrafamentos propôs recentemente um plano ousado, aparentemente sem precedentes. para o gerenciamento de Uber, Lyft, e outros serviços de transportes individuais de passageiros via aplicativos, os quais ameaçam, por um lado, entupir nossas ruas de carros, e por outro, dissuadir os funcionários públicos a fazer qualquer coisa para impedir.
São Paulo Offers the Best Plan Yet for Dealing With Uber - CityLab


Este regulamento proposto para São Paulo constitui uma melhoria em relação à recente e pioneira regulamentação posta em prática na Cidade do México, que cobra uma taxa fixa de 1,5% por viagem de serviços de mobilidade compartilhados. A proposta confere à cidade maior flexibilidade na concepção e implementação de incentivos para as empresas transnacionais implantarem serviços que complementam os transportes públicos e os táxis em períodos fora de pico, particularmente em áreas pouco servidas e para as populações carentes. Além disso, o decreto exige que as empresas transnacionais forneçam para o município de São Paulo dados sobre origens de viagem e destinos, tempos, distâncias e trajetos, preço e avaliação do serviço. Estes dados, anonimizados, são de valor inestimável se fornecidos em tempo real e se a cidade tiver a capacidade de analisá-los para fazer uma melhor utilização da rede viária e dos serviços de transporte que regula. Felizmente, São Paulo estabeleceu um laboratório de análises de mobilidade urbana (Mobilab) com profissionais do transporte, computadores e cientistas de dados para esta tarefa.
Sao Paulo’s Innovative Proposal to Regulate Shared Mobility by Pricing Vehicle Use - The World Bank


Em 2013 a Califórnia se tornou o primeiro estado dos EUA a aprovar uma regulamentação para o 'ridesharing' - lei cuja concepção contou com participação significativa do Uber. Entretanto, a participação no desenho da lei não evitou que a empresa tenha descumprido cláusulas que exigem o compartilhamento de alguns de seus dados com as bases de dados públicas. Dados como o número de viagens por código postal, a remuneração dos motoristas, além de informações sobre acidentes e o número de veículos adaptados para cadeirantes. Em 2016 o Uber foi obrigado a pagar multa de US$ 7.6 milhões para violar a lei estadual que exige o compartilhamento destes dados.
Is Uber the next big thing that goes kaput? This guy thinks so. - The Washington Post


Como os usos da inteligência artificial seguem em acelerada expansão, a sociedade cada vez mais enfrentará questões e demandas em torno do poder que essas tecnologias podem e devem ter. À medida que avançamos para a regulamentação, precisamos questionar as narrativas oferecidas pelas empresas, e certificar-nos de que a política reflete a realidade.
The Mirage of the Marketplace: The disingenuous ways Uber hides behind its algorithm. - Slate



Os esforços em torno da regulamentação de serviços análogos ao Uber no mundo tem como referência o estado da California

O caminho foi criar uma nova classe de "empresas de rede de transporte" (ETN). (Tecnicamente estes serviços não são considerados "ridesharing" na definição do CPUC [California Public Utilities Commission], que define ridesharing como práticas como carpool casual.)

create a new class of “transportation network companies” (TNCs). (Technically these services are not considered “ridesharing” under the CPUC’s definition, which defines ridesharing as practices such as casual carpool.)



Em 2013 a Califórnia se tornou o primeiro estado dos EUA a aprovar uma regulamentação para o 'ridesharing' - lei cuja concepção contou com participação significativa do Uber. Entretanto, a participação no desenho da lei não evitou que a empresa tenha descumprido cláusulas que exigem o compartilhamento de alguns de seus dados com as bases de dados públicas. Dados como o número de viagens por código postal, a remuneração dos motoristas, além de informações sobre acidentes e o número de veículos adaptados para cadeirantes. Em 2016 o Uber foi obrigado a pagar multa de US$ 7.6 milhões para violar a lei estadual que exige o compartilhamento destes dados.




Um fator que a empresa utiliza em sua vantagem é a dificuldade de governantes em compreender como a política pública deve lidar com o novo cenário.


Bauwens é um dos teóricos que enxergam um novo papel para o estado neste novo ambiente, o Estado-Parceiro


Estado-Parceiro ('Partner-State') é o conceito segundo o qual as autoridades públicas desempenham um papel de apoio na "criação direta de valor por parte da sociedade civil", isto é, sustenta e promove a produção dos pares baseada-no-comum.
Blueprint for a Partner State - Commons Transition

The Partner State is the concept whereby public authorities play a sustaining role in the ‘direct creation of value by civil society’, i.e. sustains and promotes commons-based Peer Production.



"Raw Deal: How the “#Uber Economy” and Runaway Capitalism are Screwing American Workers" #algorithm #sharingeconomy

Em 2013 a Califórnia se tornou o primeiro estado dos EUA a aprovar uma regulamentação para o 'ridesharing' - lei cuja concepção contou com participação significativa do Uber. Entretanto, a participação no desenho da lei não evitou que a empresa tenha descumprido cláusulas que exigem o compartilhamento de alguns de seus dados com as bases de dados públicas. Dados como o número de viagens por código postal, a remuneração dos motoristas, além de informações sobre acidentes e o número de veículos adaptados para cadeirantes. Em 2016 o Uber foi obrigado a pagar multa de US$ 7.6 milhões para violar a lei estadual que exige o compartilhamento destes dados.


O compartilhamento de dados é o coração da regulamentação. A ideia da gestão Haddad, que chegou a ser elogiada pela Uber, é cobrar R$ 0,10 a cada km rodado nos carros das empresas. Para fiscalizar isso, as empresas teriam de compartilhar seus dados, como número de motoristas, número de clientes, número de viagens feitas e quantidade de quilômetros rodados em cada viagem.
Haddad retira sigilo dos dados da Uber em São Paulo - Veja


"Vale esclarecer que a Uber reafirma que não é uma empresa de taxi e, portanto, não se encaixa em qualquer categoria deste tipo de serviço, que é de transporte individual público."
Haddad cria categoria de "táxi por aplicativo"; Uber é contra regulamentação - Canaltech


A edição do decreto, revelada pela Folha de S. Paulo, tem como pano de fundo uma medida restritiva imposta pela empresa Uber, que vem se recusando a compartilhar seus dados com a Prefeitura. A empresa se vale de uma liminar da 4.ª Vara da Fazenda Pública, ainda de 2015, que impede a fiscalização de seus veículos. Na prática, a Uber não vem seguindo as regras que liberam seu serviço. 
Haddad diz que sigilo a dados da Uber e outras firmas é irregular e manda revogar resolução - Estadão


O Uber obteve o credenciamento na Prefeitura para operar regulamente na capital paulista em julho. Desde fevereiro, o Uber funcionava em São Paulo protegido apenas por uma liminar que impedia a administração municipal de apreender os carros ligados à empresa. Na ocasião, o decreto foi publicado sob protestos de taxistas que se opõem à regulamentação de empresas do setor.

Como funciona

Empresas como Uber, chamadas Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs), podem comprar o direito de usar o viário da cidade, pagando outorga de 10 centavos por km rodado por cada um de seus motoristas parceiros. O valor pode variar de acordo com o local, horário e prioridades estabelecidas pela administração.

Essas empresas devem se cadastrar na Prefeitura, se comprometer a abrir dados sobre suas operações ao município e fiscalizar a qualidade e a segurança do serviço. Os dados compartilhados pelas empresas são acompanhados pela administração, que monitora o serviço.

Para limitar a atuação das OTTCs, a Prefeitura estabeleceu que elas podem rodar 27 milhões de km por mês, o equivalente ao que rodariam 5 mil táxis em tempo integral. Esse valor de 27 milhões de km vai ser dividido entre todas as empresas que se credenciarem. O número de carros de cada uma delas pode variar. A Prefeitura vai regular o consumo de quilômetros rodados por meio do preço da outorga: se as empresas rodarem demais, o preço da outorga aumenta, desestimulando o uso.


De acordo com a resolução da véspera, a informação recebida, gerada ou guardada pela prefeitura era um bem com valor comercial e, "por isso, deve ser protegida, cuidada e gerenciada adequadamente de forma a garantir-lhe disponibilidade, integridade, confidencialidade, autenticidade e auditabilidade, independentemente do meio de armazenamento, processamento ou transmissão".
Haddad revoga resolução sobre sigilo de dados de empresas de transporte - G1


Na resolução emitida, o município proíbe que informações como a quantidade de motoristas e veículos a serviço da Uber se tornem públicas. Haddad não quis emitir uma posição sobre o conteúdo do parecer a falou que a comissão competente vai avaliar tecnicamente a questão. “Aquilo que for sigilo do cidadão e a concorrência tem que ser preservados, todo o resto tem que ser liberado”, afirmou.
Comissão pulou uma etapa, diz Haddad sobre sigilos da Uber - IstoÉ


A Comissão Municipal de Acesso à Informação (CMAI) foi criada por meio do decreto no. 53.623/2012, que regulamentou a Lei de Acesso à Informação no município de São Paulo. É formada pelos titulares de sete secretarias: Secretaria do Governo Municipal (SGM), Secretaria de Negócios Jurídicos (SNJ), Secretaria-Executiva de Comunicação (SECOM), Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico (SF), Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão (SEMPLA), Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e Controladoria Geral do Município (CGM). Os titulares podem indicar para representá-los o secretário adjunto e, quando não houver, um servidor ocupante de cargo ou função diverso, a seu critério.
Comissão Municipal de Acesso à Informação - CMAI


De brinde, aproveito o post para registrar meu apoio à reeleição de Haddad como prefeito de São Paulo, talvez o único político brasileiro que demonstra sensibilidade e conhecimento nos temas acima citados, que são definidores do futuro de nossas cidades.